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terça-feira, 5 de outubro de 2010

DEPRESSÃO É TRISTEZA?

"Com quanta tristeza se faz uma depressão?", indaga Patrícia Porchat* em artigo à revista Viver Mente & Cérebro (edição 212 / Setembro 2010), ao mesmo tempo em que cita e defende a posição de Allan Horwitz e Jerome Wakefield, que, em seu livro, A tristeza perdida, criticam “diagnósticos [de distúrbios mentais] que ignoram a relação entre os sintomas e o contexto [de vida] do paciente”. A autora se coloca contrária ao que considera a patologização do sofrimento, quando um indivíduo é diagnosticado portador de depressão.

Então – com quanta tristeza se faz uma depressão...? A rigor, com nenhuma. O intento de mesclar equivocadamente os conceitos de depressão e tristeza está muito longe de representar uma novidade - aventada por leigos (na maior parte dos casos) e, mesmo, por alguns estudiosos do mundo psíquico humano – psicólogos, e psiquiatras com maior predileção por explicações metapsicológicas dos fenômenos mentais, em detrimento das explicações neurobiológicas, propriamente ditas. Infelizmente, confundir tristeza com depressão é uma imprecisão de conduta que pode acarretar sofrimento adicional a quem já está sofrendo além da dose suportável. O indivíduo deprimido não está triste, ele está deprimido. Isto não quer dizer que seu contexto existencial não tenha nada a ver com isto; tem a ver, tanto quanto, em caso de depressão, uma atividade neuroquímica anormal, estabelecida por alterações importantes na fisiologia de alguns neurotransmissores do indivíduo, se faz presente e necessita de cuidados.

Ninguém ‘perde’ tristezas – sua chance de poder ficar triste – quando busca tratamento para uma depressão severa; ao se tratar, a pessoa deixa de estar deprimida, mas continua podendo ficar triste, normalmente, sempre que for o caso. O DSM (Manual Diagnóstico e Estatístico dos Transtornos Mentais, IV, ou outros que o antecederam), publicado periodicamente na América do Norte, está infinitamente longe de ser a única fonte descritiva dos distúrbios mentais, entre eles, os do humor, e, entre eles, a depressão...Inúmeros textos, de autores e professores renomados, procuram explicar às pessoas por que tristeza NÃO é depressão. Qualquer boa explicação técnica sobre depressão irá frisar, especificamente, as diferenças importantes entre um estado e outro.


Nosso comportamento, nossa personalidade, não são entes mentais que pairam no mundo interno como fantasmas alados. De fato, eles são, sim, entes mentais, e, como tais, são produto do funcionamento de um cérebro, nem mais, nem menos. Assim é que toda mente tem seu substrato morfo-fisiológico respectivo, e é a esse substrato, concreto, corporificado, que ela deve sua existência. A mente, e, com ela, o comportamento, não é uma outra entidade, paralela e 'descolada' dos esquemas neurais que a abrigam, muito ao contrário. A carne é, sim, o 'lugar' orgânico de onde emana esse processo de extrema complexidade, chamado psique

O cérebro é um órgão adaptativo por excelência – nele estão registradas todas as nossas reações importantes ao mundo externo e ao mundo interno; essa reação se dá, antes de mais nada, neuroquimicamente: em função de determinadas interações do EU com o mundo, ou do EU com ele mesmo, certas ligações (sinapses) nervosas são fortalecidas, e outras, enfraquecidas ou inibidas; a ligação entre uma célula nervosa e outra é feita através de substâncias químicas, chamadas neutrotransmissores. Perceba, então: o uso específico de nosso cérebro, em função de nossas interações existenciais, irá consolidando, ao longo do tempo, determinados ‘arranjos neurais’, e, neles, determinados mecanismos neurotransmissores; todo esse processo transforma-se em memória; uma parte dele resulta em comportamento individual, com sua dupla face – (1) ações, manifestações, idiossincrasias... e (2) padrões neurais em que esses esquemas de ação e manifestação são armazenados.

Quando o indivíduo chega a um estado de depressão importante, há sintomas inequívocos de depressão do sistema nervoso central em alguma medida – a letargia, a ausência quase que total de disposição para dar um passo, a impossibilidade de concentração quase completa, traduzem um embotamento não só da vivacidade emocional, mas também da vivacidade sensorial; a pessoa fala pouquíssimo, ou nada, não consegue manter uma conversa porque se sente, literalmente, a léguas de distância dos outros, e, não raro, diz que não os ‘escuta bem’...A pele perde o viço, os lábios esbranquiçam, os olhos tornam-se fôscos – uma vez que a pessoa não olhe muito para nada do mundo externo. Os casos de suicídio, nesta fase aguda, são inúmeros. Atentemos que, aqui, a ‘central de informação’ do indivíduo entra em colapso, de modo que ele já não é mais capaz, nesse estado, de elaborar suas tristezas ou suas alegrias – o que está em jogo, nesse caso, é uma sensação de impotência essencial para o ato de viver. E por quê...? Porque, grosso-modo, diversos grupos de neurônios dessa pessoa estão operando ‘ligações meia-boca’ entre eles, ‘frouxas’ e deficientes; o indivíduo está com seu cérebro ‘pouco ligado’, ‘pouco ativado’ – não se sente realmente dono de suas capacidades, porque, no fundo, elas estão disponíveis apenas de modo ‘parcial’.

Se um indivíduo é diabético e precisa tomar insulina, deixá-lo sem esse hormônio quererá dizer que vamos cooperar para que ele elabore o coma diabético que lhe é de direito...? Se um indivíduo tem nove graus de miopia em cada olho, deixá-lo sem seus óculos será valorizar sua ‘visão do mundo’ e permitir que, mais uma vez, ele elabore essa visão, com a legitimidade que lhe cabe...? Jaz aí, no fundo, uma concepção idealizada e falsa da Natureza. Não é porque algo ‘veio com a gente’, de nascença, que funciona ‘perfeitamente’...; mesmo a noção de perfeito precisa ser encarada com os pés na terra. A perfeição fisiológica é aquela que assegura uma qualidade de vida que, na média, é satisfatória para a pessoa – para cada pessoa.

Um diagnóstico psiquiátrico preciso e efizaz certamente terá de dar conta das duas faces implicadas pelo distúrbio psíquico eventual – (1) a face do comportamento e respectivo contexto existencial desse comportamento; (2) a face do esquema neurofisiológico que está refletindo tal contexto e comportamento. O tratamento completo, como se sabe, deverá cobrir as duas facetas, na medida em que uma está e sempre estará diretamente ligada à outra.

É preciso parar de confundir uma correção química necessária ao funcionamento neuronal com a fantasia pseudo-naturalista de que os medicamentos para depressão colorem artificialmente a realidade do paciente. A paisagem cinzenta, às vezes parda, do mundo psíquico (e cerebral) do indivíduo com depressão não é sinônimo de uma possibilidade justa de se ficar triste, tanto quanto uma perna quebrada não é sinônimo de um legítimo direito de passar pela experiência de tê-la engessada...


Marcas internas de alerta

O organismo vivo é dito auto-regulador, porque, através de um sistema de ‘sinalização’ interna, ele é capaz de engendrar ações, conscientes ou inconscientes, que possam providenciar o que for preciso para mantê-lo, efetivamente, vivo e o mais saudável possível. Os dois grandes ‘sinais adaptativos’ de que nosso cérebro dispõe são as emoções gerais, conhecidas como prazer (satisfação/saciedade das necessidades fundamentais desse organismo) e dor (alerta quanto a uma ameaça ao organismo, no todo ou em parte, caracterizado por sensações de mal-estar e desconforto). Dessas emoções principais decorrem todas as outras, todos os outros subtipos que o ser humano foi capaz de especificar para si mesmo. As dores podem ser mais propriamente ‘somáticas’, carnais, ou, podem ser psíquicas – mas não menos ‘físicas’, entretanto.

Ocorre que há diferentes níveis de dor, das mais suportáveis às mais insuportáveis...A tristeza é uma emoção ‘dolorosa’, é certo, um alerta para o indivíduo refletir sobre sua rota existencial corrente, sobre os comportamentos que podem estar cooperando para o embotamento de seu prazer de viver; mas é uma dor que se suporta, mesmo quando muito pesada. Inversamente, a depressão resulta numa dor-limite, em que o sistema psíquico está chegando perigosamente perto de um estado de ‘ruptura’ com a razão basal de existir – uma ‘desabilitação’ para ser e estar (triste, contente, com raiva...); a percepção de um desespero desfocado, pobre em razões específicas e pontuais, inunda o interior psíquico do indivíduo como um tsunami furioso, invadindo uma cidade inteira e a fazendo submergir. Nessa hora, até o medo, última defesa dolorosa da integridade física individual, se enfraquece e abre espaço para um impulso de ‘salvação final’ desse tormento, o impulso de se tirar a própria vida. O suicídio do deprimido em crise aguda constitui sua fuga desesperada de uma dor (psíquica) que ele simplesmente não consegue/conseguiu suportar.

Faço votos para que nenhum um de nós jamais cometa o pecado fatal de querer zelar pelo sofrimento depressivo de um ente querido, a fim de que ele ‘não perca’ sua depressão - e, então, se ‘perca’ de nós para sempre. É preciso ter cuidado com nossas imprecisões, nossas idealizações do mundo e de nós mesmos, nossos romantismos terapêuticos, enfim. O deprimido não está taciturno, choroso, pensando no que deu errado em sua vida; não, ele está a um passo de submergir em um poço de areia movediça – nesse estado, tudo o que ele pode fazer é estender a mão e esperar que consigam puxá-lo dali.

Depois, sim, ele poderá confrontar seus choros, seus lutos, as tantas tristezas que se acumularam em seus baús psíquicos até aí, através de processos psicoterapêuticos que o auxiliem para esse fim.


(*) Patrícia Porchat é psicanalista, doutora em Psicologia Clínica (USP) e professora universitária (UNIP).

Para ver seu artigo completo:
http://www2.uol.com.br/vivermente/artigos/com_quanta_tristeza_se_faz_uma_depressao_.html

Um comentário:

  1. A precisão de suas colocações não deixa dúvida quanto à diferença entre tristeza e depressão... Achei ótimo você ter esclarecido isso, pois a abordagem exagerada da mídia desse tema (TV, especialmente), - sem se pautar nas definições corretas dos dois estados, tem deixado as pessoas tomaram ambos como sinônimos. Quinze dias depois, uma notícia nos chocou aqui em Santo André: um professor da UFABC, de 41 anos, coordenador de vários cursos na área de Física, atirou-se do 11º andar do prédio da própria universidade... A mensagem que ele deixou em seu blog é bem ilustrativa dos esclarecimentos que você fez no seu texto. O link para o blog dele é http://dedalus-atlas.blogspot.com/

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